segunda-feira, outubro 09, 2006



Hoje acordei frágil.

Não, ontem adormeci fragil. Deitei-me com a fragilidade de um coração de vidro, sem saber se me poderia deitar de bruços, se me poderia revirar na cama. Revirei memórias no medo de revirar o corpo e partir o coração. Descobri depois que as memórias também o partem. Acordei fragil com a fragilidade que me não deixou dormir, será que alguma vez fui miúda, a responsabilidade, a consciencia, o chegar a horas, o bater das teclas ritmadas com o tédio dos numeros, das informações passadas para o papel. Amarelado. E enquanto dactilografava fichas, adiava a vida, serio e cumpridor, nada consta em desabono. A consciencia dos dias a passarem e eu ali fechada, amarelada como o papel, cumpridora, o relogio que me retinha, as palavras que não poderiam ser escritas numa ficha amarelada de informação. Nada consta. Tudo consta. As palavras a dançarem à minha frente, logo faço bifes para o jantar, assim fico com tempo para elas, logo compro o jantar feito, apanho um táxi, dispo esta saia, descalço os sapatos e brinco no chão com elas. Mas a vida é só isto? em abono da verdade o desabono dos dias, das noites, seria e cumpridora, trabalho casa casa trabalho, o mar ao longe e os barcos de papel, desfeitos, sonhei com eles, feitos de fichas amareladas e depois descobri o Antonio Lobo Antunes, memórias de elegante, era eu uma miuda, será que algum dia fui miuda, o anticristo, depois. Elas dormiam já, arrumados os brinquedos, as superficialidades, as superficies limpas e desinfectadas, como se desinfecta um coração triste, um coração de vidro, que se parte, pode partir, ja se partiu.

De coração partido descobri os muros, o que andava eu a ler nesse tempo? não sei, escrevia, escrevi sobre o carroucel, escrevi sobre palavras cruzadas e estores que não permitiam que o som triste da alma saltasse pelo parapeito. muros. E depois não li, nem escrevi. Amei de novo. E voltei a acreditar que as noites compensassem os dias do serio e cumpridor, nada consta em desabono. Aprendi a navegar. Não lia, mas navegava.Montargil, lembram-se? Voces iam pelos campos e eu levava o barco, dizia-vos adeus até vos perder de vista e depois acelerava pelas aguas mansas da barragem, descobria as águias, descobria o vento no rosto e sentia-me feliz.

Abraçava-vos e fomos felizes até permitirem. Porque permiti eu a infelicidade?Não sei. Nunca deveria ter permitido. Nada consta em desabono. Nunca constou ate que o muro caiu, o anticristo se soltou em mim, a miuda irreverente voltasse para salvar o que outros destruiram. Como me poderia ser fiel, se nunca me foi leal? coração de vidro, que se parte, se pode partir, de novo partido.

Até que o serio e cumpridor nada consta em desabono, deixou de fazer sentido. Tudo deixou de fazer sentido. Só as máscaras dos outros agora faziam sentido. Cortantes como os vidros.

Nas teclas o ritmo do nada.

Apenas o som do meu riso amargo.

Não me vesti de luto. Corações partidos não precisam de se vestir.

Andam nus, inconscientes talvez da sua força,

inconscientes da sua rota,

inconscientes dos muros que quebram à passagem.

Hoje acordei fragil, quam sabe adormeci sobre o primeiro vidro partido do meu coração?

Disparate o meu, acordar assim com o coração nas mãos logo hoje, que fazes anos.

Acordar banhada em saudades tuas, ainda ontem partiste, acordar banhada em saudades minhas, acordar banhada em saudades do avô, se....a fragilidade dos ses que compõem o nosso destino, se....acordar banhada na dúvida, na pergunta, na inevitabilidade das razões, dos vidros, do coração.

Está bem, já vejo o teu olhar aflito, a censura no teu rosto compreensivo, oh mãe...logo hoje?

Limpo as lágrimas.

Se cá estivesses, nem irias desconfiar, como mais ninguem que me vir hoje desconfiará, mas que queres? gostaria hoje de te dar um beijo, abraçar-te e só te posso enviar este coração de nuvem, vidro e amor, que embora se parta de saudades rejubila de felicidade por tu existires!

Amo-te, querida!

Não desperdices a tua vida, um momento da tua vida, o sentido da tua vida!

Parabéns, filha minha!