terça-feira, maio 02, 2006

de memórias...confesso...








Era Verão -talvez 1972- e eu uma miuda, sempre atrás do meu pai.
Ainda mais, depois da operação. Do cancro que queriamos expulso dele.
Ainda mais depois da aflição da minha mãe e do meu silencio...como se o meu silencio afastasse o medo de o perdermos. Como se o meu silencio, silenciasse a doença dele. Silencio imposto pela mãe. Ninguem pode saber. E assim se aprende o silencio...

Certo é que já tinha aprendido a silenciar e a guardar segredos, quando nessa noite quente de Verão, o meu pai me convidou a ir com ele ao "Fogo de Campo" ver alguem cantar (estavamos de férias no Clube Campismo Caravanismo Concelho de Almada, na Costa da Caparica) o que de certeza não agradou à minha mãe, pelo trejeito que fez..."oh Henrique levares a miuda!"

Claro que a miuda foi, àvida de acontecimentos e canções, dos livros do pai, àvida de vida, agora que silenciava a morte anunciada.

O "fogo de campo" era num circulo, tipo coliseu em miniatura, com uma fogueira ao meio, onde se reuniam uma serie de "companheiros" que assim passavam as noites de sabado, cantando, contando anedotas, contos e poemas...pela correria das pessoas adivinhava-se algo de importante e pelo cochichar entre eles, algo de "estranho"...Pai, quem vem cantar?

Chegou repentinamente e iluminado apenas pela luz da fogueira, um homem de óculos e meio despenteado. Disse "Boa noite Camaradas! Boa noite Companheiros! Estou feliz por estar aqui e saber que somos muitos...para voces vou cantar os Vampiros"


No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada

No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhe franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Nunca esquecerei essa voz única, ele foi o segundo segredo da minha vida " é o Zeca Afonso, ele não concorda com o actual regime polictico, a Pide, -que para mim era a policia que nos tratou do passaporte quando fomos a Espanha - , já o prendeu por ele cantar estas canções e não concordar com as leis deste país, não podes contar a ninguem que o viste e ouviste, sim?"

Ele, de certo modo, veio equilibrar o meu fardo de segredos, abrindo de espanto os meus olhos e horizontes, afinal para além da minha dor, havia outras dores e batalhas...outros segredos e cumplicidades...Jurei a pés juntos que nunca diria nada a ninguem e nem mesmo à minha mãe disse uma palavra, sobre o momento unico que tinha vivido de mão dada com o meu pai, iluminados por uma fogueira de esperança...ao som de Zeca Afonso...

Foi por eles, por meu pai e Zeca Afonso, que quando passados uns meses, entrei no liceu Maria Amalia Vaz de Carvalho, comecei a trazer para casa, os panfletos que encontrava escondidos nas casas de banho...perante o olhar horrorizado da minha mãe e a incredibilidade do meu pai...que nunca mo proibiu, apenas me fez ver que um dia poderíamos tambem nós ser presos!! Como o colega dele, o Daniel Cabrita...

Não acreditei que isso fosse possivel, afinal eu era apenas uma miuda, que gostava de fumar cigarros às escondidas e de beber cafe no Pisca Pisca, mesmo sentindo aquele enjoo estranho da mistura explosiva para a minha idade... era apenas uma miuda, nunca iriam ver dentro da minha mala!!!!

...E os meses passaram sem nunca termos sido presos, conforme eu previa...

...em Março de 74 o meu pai partiu, deixando-me ainda mais fundo no fundo do silêncio...
...e em Abril chegou o Zeca Afonso, por fim livre de segredos ou silencios...e eu, já mulherzinha, ouvia-o de lágrimas nos olhos...punhos cerrados, não sei se, de ideologia ou de saudade contida em silêncio...

Ouvi-lo ainda hoje é para mim, um momento especial de grande emoção...a sua voz fala-me da cumplicidade com o meu pai, da nossa ligação, que morte, segredo ou silencio algum pode destruir...

A sua voz fala-me de um país que todos nós quisemos construir melhor.

De um punhado de pessoas, unidas à volta de uma fogueira, com os olhos a brilharem de coragem e ideais...fala-me de tudo quanto quisemos ser naquela noite incendiada pela esperança e pela garrra de um mundo melhor, mais justo, mais aberto as mulheres, aos livres pensadores, a outras ideologias e vivencias...

Confesso que hoje, trinta e muitos anos passados, quero mais. Confesso que talvez esteja eu, também presa na minha gaiola dourada, nem por isso menos castradora ou asfixiante. Confesso que adivinho um dia destes o bater da porta e sair de novo à rua, buscando ar, quiçá pulmoes ou mesmo uma nova forma de respirar...

Confesso que o 25 de Abril e o 1º de Maio me trazem nostalgia. Trazem à tona a minha própria nostalgia. Deixei de ser a voz deixei de ser a garra deixei de ser bandeira.

Confesso que esperei mais de mim e das minhas horas, mais que a musica, mais que os livros, mais que os móveis sem pó, as flores a desabrochar. Confesso que sonhei com mais. Confesso esta nostalgia nova de não fazer nada, a não ser deixar as horas passarem pelas memórias...

Confesso que deveria ter lutado mais...ou não ter feito do silencio a minha arma mais (ou menos)poderosa.

Confesso que não acredito que praticar o bem e a justiça apenas em privado, façam deste, um mundo melhor...

Confesso que o tempo é como um vampiro, que nos come tudo, à partida...

segunda-feira, maio 01, 2006

Levo-te...


(ainda) dormes embalado no rio que sou,
inundado de mim.
Do meu coração fiz o teu porto de abrigo,
e das minhas marés
as tuas rotas.

Levo-te hoje rio acima
na esperança de um mar
que nos liberte...

de um mar que nos faça perder a ancora da sobrevivencia
e nos cale os bancos de areia onde tropeçamos...

de um mar que nos renove
e leve com ele
os ferros onde ficamos esquecidos...

de um sal que nos queime.
que nos queime as palavras e as memorias de outros rios
por onde navegamos e nos perdemos.

...ainda dormes inundado de mim e já te levo pelo meu rio acima...até ao infinito das marés...

que invento para te amar.