quinta-feira, julho 31, 2008


Acordou estranhamente tarde e cansada.



Levanta-se ainda sonambula e como um automato, vai para a cozinha inundada de luz.
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Faz um café e semicerrando os olhos, acende um cigarro enquanto admira as plantas exuberantemente verdes que descem pelo móvel onde incide o sol.
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Pés descalços, senta-se ao computador e enquanto acaba aquele café da manhã quente e perfumado a canela, percorre os mails com os olhos. Espreguiça-se e sente o peso de um dia inteiro sem nada de verdadeiramente importate, para fazer.


Inclina-se, liga o rádio: música, acorda-me!

Sabe que a música a despertará.

Sabe também que tem milhentas coisas para fazer, mas que não chegou o momento de fazer qualquer uma.
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Sabe que tem amigas que a esperam , mas sente que aquele dia ainda não é o momento de ir ter com qualquer uma.
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Sente-se presa no tempo, como se para ela viver, o relógio tivesse que inventar um novo compasso.
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Este sentimento assusta-a. Reclusão, solidão, isolamento.
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Rindo-se de si própria (gosta de se rir do seus medos como se o riso ajudasse à desconstrução)pensa que talvez se tenha transformado numa eremita.
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Sentada, olhar perdido na ampla sala decorada em tons quentes, travando o fumo desse cigarro que a veste de fumo, imagina-se numa velha cadeira de balouço, rodeada de gatos, jornais velhos que ningém lê, pratos sujos, panelas espalhadas pelo chão, os cabelos sem verem pente há meses.


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Escárnio de vizinhas louras e bem cheirosas, lamento de piedade de amigos bem intencionados, que tudo tentaram para a tirar da letargia , sem sucesso, alvo de criticas por parte dos filhos que não percebem ainda o que aconteceu aquela mulher que os deu à luz.

Como de repente mergulhara em tal escuridão? E como não percebem, gritam-lhe para sair dali, dar a volta por cima...

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...em que ponto abandonara o crochet da vida e dos dias, em que momento se teria afastado de todos os outros?
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...Em que momento o fio invisivel que a ligara aos outros se teria dissolvido na chuva do tempo?

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Pára o pensamento ao tomar consciência da quase emoção que a percorria, como um arrepio.

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E como a passagem do lado luminoso para o lado escuro, lhe parece ténue, nessa manhã soalheira, coisa de segundos, levanta-se, afastando de si tais arquitecturas e especulações.


Acena à amiga que mora no prédio em frente e, conforme vem sendo hábito nos ultimos meses, combinam o café para daí a 30 minutos.
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Lava a caneca azul turqueza onde bebera o café, faz a cama onde dormira, apanha o livro deixado aberto no chão.

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E quando sai do duche e se penteia, sente um misto de espanto e alivio, pela maciez do cabelo e pela facilidade de se pentear. Sai de casa fresca, hidratada, vestida de lavado, óculos escuros amplos para fugir à enxaqueca, sorriso no rosto, pronta a povoar o seu dia.

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Sem nada dizer a ninguém, contudo, sabe que algures dentro da sua mochila, ainda transporta uma velha senhora que já não sente a música...